sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Povo Indígena Tenharim: problematizando a Crítica

No intuito de disponibilizar mais informações sobre os conflitos acontecidos no final do ano no sul do Amazonas, considerando a perspectiva indígena, é que elaboramos este texto. Seu principal ponto de partida é a notícia divulgada pelo site “A Crítica de Humaitá”, de 30 de dezembro de 2013, cuja pretensão é: “[...] ajudar milhões de pessoas do mundo inteiro, no sentido de entender as razões, pelos quais se gerou este conflito entre brancos e índios no sul do Amazonas [...]”, escrito supostamente a partir de informações do “povo” e de uma fonte “não identificada”, sem considerar em nenhum momento a voz dos Tenharim. Óbvia unilateralidade. Em função disso, avalio ser importante discutir o assunto.

O que salta aos olhos no decorrer de toda a escrita do texto é a concepção conservadora expressa na representação congelada dos Povos indígenas como se ainda vivessem no tempo de Cabral: “A população de Humaitá, Apuí e 180... Cansaram dos abusos dos índios que não tem nada de nativo... Não vivem mais da caça e da pesca e nem usam arco e flecha”. Afirmações como essa não levam em conta, o significativo tempo de 500 anos caracterizado por conflitos nessa complexa relação indígenas e não indígenas com evidentes prejuízos para os índios, caracterizados por extermínios de etnias, reduções drásticas da população, doenças do contato, escravização, rapto de mulheres e crianças, enfim um conjunto de violações e desrespeitos. Outra coisa, as populações indígenas Tenharim e Jiahui são originárias desta região, portanto, podem ser consideradas nativas, sim.

Esta representação é perversa também porque ao ver os índios como povos do passado negam sua condição na atualidade, o papel das trocas culturais e, sobretudo das várias e diferentes contribuições das populações indígenas para a formação da sociedade brasileira. Sabemos que parte significativa das palavras que utilizamos constituem empréstimos culturais, legado dos povos indígenas como: anu, arara, maniçoba, maracujá, paca, peteca, piranha, sabiá, jacaré, Humaitá, Apuí, por exemplo. A borracha ou Hevea brasiliensis que inaugurou o ciclo industrial moderno na Amazônia foi descoberta nas aldeias indígenas; da mesma forma as fibras e técnicas utilizadas para trançar cestarias; os saberes sobre a madeira adequada para a construção de casas, os elementos extraídos das diversas palmeiras inclusive o palmito e as diferentes castanhas eram consumidas há muito tempo pelos índios. O conhecimento da medicina indígena está presente nos grandes laboratórios, a título de ilustração citamos a quinina – utilizado no tratamento da malária, o curare – de onde se retirai a Tubocarina, utilizada em cirurgias do coração, dentre outros. Mais sobre o assunto pode ser aprofundado com a leitura de Berta Ribeiro no texto “A contribuição dos povos indígenas à cultura brasileira”.

Ao afirmar que “[...] aqui é assim... Índio anda de Hilux... Tem iPhone 5, cartão de crédito... Tem piercing... E até cachorrinho de raça, comem do bom e do melhor e ainda tomam whisky Old par...[...]”, além de negar essas trocas interculturais, o texto veicula descaradamente uma visão distorcida que não corresponde ao cotidiano vivido nas aldeias indígenas, além de por a lupa na utilização de recursos tecnológicos por parte dos índios com o evidente propósito de manter o estereótipo de uma única imagem indígena - franja, cocar e tanga, de modo que o que foge dessa imagem não é mais indígena. Aqueles que pensam que é proibido aos índios terem acesso aos bens culturais e tecnológicos, recomendo a leitura de Bessa Freire: “Os índios do século XXI”.  As culturas de forma permanente dialogam entre si – influenciam e são influenciadas, em múltiplos movimentos, inclusive assimétricos. A identidade indígena permanece mesmo quando utilizam recursos tecnológicos. Não é porque os índios usam celular que deixam de ser índios, de igual modo não é porque comemos pão francês quase todos os dias que vamos virar franceses.

Ainda de acordo com o texto: “[...] o povo já estava cansado do abuso nos preços do pedágio pago para que carros transitassem na terra deles [...]". É preciso compreender que a cobrança feita pelos Tenharim nada mais é que uma possibilidade de resposta indenizatória, um mecanismo de compensação étnico-ambiental considerando os danos causados pela implantação da rodovia federal Transamazônica em seu território – materialização da gestão militar que ignorou a presença dos índios ali, acarretando uma série de prejuízos para este povo: invasão territorial (ninguém perguntou aos Tenharim o que achavam disso) mortes, infestação de doenças, trabalho forçado, dentre outros com um argumento megalomaníaco de um suposto progresso.

O texto representa os Povos Indígenas como cruéis, selvagens, derivação atribuída aos que vivem nas selvas: “[...] Sabe-se por terceiros e por uma fonte que trabalhava na aldeia, que os mesmos foram torturados, cortados em pedaços e queimados![...]”. Uma informação não aprofundada e que por isso mesmo só alimenta velhos estereótipos, reforça preconceitos e obscuridades. A meu ver, pela gravidade de seu conteúdo precisa ser verificada e apurada, pois quem afirmou isso, deve fundamentar o que está dizendo de forma responsável e não licenciosa, escondida ou protegida por subterfúgios.

A ignorância, o desconhecimento sobre os Tenharim misturado as práticas de má fé patrocinadas pelos poderosos da região do sul do Amazonas – madeireiros e fazendeiros principalmente - resultaram em um perigoso caldo preconceituoso a serviço de propósitos que certamente não podem ser declarados: “[...] Tudo isso por que, segundo a tradição e o Pajé, as pessoas do carro preto deveriam ser sacrificadas, caso contrário, a alma do "Cacique embriagado" não se salvaria! [...]”. Historinhas que parecem inocentes, mas que são mentiras exóticas produzidas com finalidades muito bem definidas: de estimular o ódio étnico da população contra os indígenas.

É preciso que fique claro que as imposições culturais que o Povo Tenharim sofreu - quem conhece um pouco da história desta etnia sabe disso - que infelizmente não existe mais a figura do Pajé em sua estrutura social, assim é inverídica a afirmação de que: “[...] o Pajé desta tribo (Tenharin) teve um "sonho"zzz... Onde ele viu que o tal cacique, não havia morrido de acidente e sim ‘atropelado’ por um "carro preto"[...]”. Outra coisa que precisa ser esclarecida é a de que na cosmologia tradicional Tenharim não existe figura de alma vagando por aí.

Há uma explicita desmoralização dos Povos Indígenas: “[...] este (cacique) encontrava-se em total estado de embriagues!”[...]”, uma informação claramente em desfavor dos índios que serve apenas para desqualificar,  difamar, veiculadas com freqüência nas redes sociais e veículos eletrônicos. 

O texto reproduz a velha cantilena de que os índios são privilegiados pelo governo: “[...] tem total apoio do governo federal, e são tratados como população prioritária, recebem todos os benefícios existentes em lei e ainda acham podem tudo![...]”, isso é coisa de quem não acompanha os embates do movimento indígena com o  governo federal. E duvido que os índios como a exemplo de outros cidadãos e cidadãs tenham efetivamente acesso a todos os seus direitos. Em Humaitá atividades neste sentido foram desenvolvidas no ano passado.

Quanto à morte do Cacique Ivan Tenharim, ela não pode ser usada como pretexto desencadeador dos eventos de depredação de órgãos públicos que prestam serviço as etnias e os ataques nas aldeias, já que consideram que a morte do Cacique foi provocada em função do acidente de moto que atingiu a sua cabeça conforme atestado no laudo pericial. O que pode ser avaliado é que pela natureza e agressividade da ação – constatei isso com meus próprios olhos - isso já estava sendo planejado há muito tempo e certamente contou com expressivo financiamento e apoio de madeireiros, comerciantes e fazendeiros, um verdadeiro ajuste de contas como disse a OPAN.
  
Em relação aos desaparecidos, os Tenharim tem afirmado com veemência que não tem nenhuma relação com o assunto. Colocaram-se a disposição da justiça possibilitando a entrada de investigadores nas aldeias, para que essa situação fosse esclarecida e assim a rotina das famílias fosse reestabelecida. De modo que não é verdade o que dizem sobre impedimento de autoridades no território indígena. Vale salientar que os Tenharim já expressaram aos familiares dos desaparecidos sua solidariedade, informando que em nenhum momento os índios podem ser responsabilizados pelo sumiço de ninguém e nem sofrer injustiças em função disso. Inclusive as oitivas da Polícia Federal já estão acontecendo.

Enfim, embora proclame o desejo de informar - o texto explicita um conjunto de dados parciais que levam em conta apenas um lado, numa clara visão anti-indígena, que sugere um visível incômodo de boa parte de grupos regionais poderosos que estão e sempre estiveram desconfortáveis com a presença dos índios no sul do Amazonas cujo conflito teve origem em 1972 desde a instalação da rodovia Transamazônica sem nenhum diálogo com essa população que sofreu profundos e danosos impactos com esse empreendimento. De lá pra cá muitos outros episódios de violência tem assolado os Tenharim, o conhecimento dessa contextualização permite compreender um pouco mais esse complexo jogo de interesses econômicos e de descaso das autoridades públicas que vem marcando e produzindo violências no sul do Amazonas.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

TEMPOS SOMBRIOS PARA OS POVOS INDÍGENAS

OIARA BONILLA
Os ataques aos povos indígenas começaram 514 anos atrás, e sempre foram pautados pela lógica de expansão territorial e econômica do país, atingindo períodos de particular crueldade, levando ao extermínio de populações inteiras e ao desaparecimento de grande parte da diversidade sócio-cultural do país. Hoje é possível dizer que estamos em um destes períodos. Desde novembro do ano passado, assistimos no Brasil a uma avalanche de agressões e ataques explícitos e diretos aos povos indígenas.
A Rodovia Transamazônica (BR 230) foi construída numa época particularmente atroz para os índios. Atravessando terras indígenas e retalhando implacavelmente a floresta, a estrada abriu brechas para a “colonização” da região, – isto é, para a extração de madeira, a criação extensiva de gado (mediante extenso desmatamento prévio) para, mais recentemente, possibilitar o plantio de soja, cana e demais commodities – hoje motores econômicos e justificativas “incontestáveis” das atrocidades mais atuais que continuam sendo cometidas.
Um dos territórios atravessados pela estrada é justamente o do povo Tenharim, que ocupou a cena nos noticiários no final do ano e continua no centro das atenções. Atualmente, essa região, conhecida como sul do Amazonas, é campeã de desmatamento, de grilagem e de violências contra seringueiros, índios e pequenos agricultores. Desde os anos 1970, os Tenharim estão aguardando compensações por suas terras terem sido cortadas pela estrada, e pelas mortes acarretadas ao longo do processo de sua construção.
Uma investigação aparentemente inconclusa sobre a morte mal explicada de uma das principais lideranças Tenharim, seguida do desaparecimento de três não indígenas na região provocou um levante da população local contra os índios, gerando uma onda de violências, declarações e vociferações preconceituosas e racistas sem precedentes nas ruas da cidade de Humaitá (AM). Diversas reportagens, relatos, comentários, fotografias e vídeos (onde, por exemplo, é possível ouvir gritos de alegria e comemorações durante as ações violentas) nas redes sociais e na mídia local estamparam a brutalidade do racismo de alguns moradores não-indígenas de Humaitá.
Este fato, que poderia ser considerado como um mero caso policial, infelizmente, não deve ser tratado como um caso isolado. Ele é o último de uma série cada vez mais massiva de agressões e ações abertamente preconceituosas e violentas contra os povos indígenas no país.
Impossível não lembrar, mais uma vez, da invasão da sede da Fundação Nacional do Índio por ruralistas em Campo Grande e do discurso de uma mulher desejando aos índios: “Morram! Morram!” no contexto do Leilão da Resistência. Organizado em dezembro de 2013 por fazendeiros e simpatizantes do agronegócio no Mato Grosso do Sul, o encontro arrecadou quase um milhão de reais para financiar milícias armadas – ou, oficialmente, “empresas de segurança privada” – destinadas a proteger as fazendas de eventuais retomadas de terra pelos Guarani, Kaiowá e Terena. Desde o início do século XX, os Guarani e Kaiowá foram espoliados sistematicamente de suas terras e obrigados a viver em exíguas reservas, ecologicamente devastadas, sem ter nenhuma outra perspectiva a não ser servir como mão de obra barata para os mesmos latifundiários que hoje ocupam e exploram suas terras tradicionais.
Há poucos dias, também no Mato Grosso do Sul, a investigação da morte de Oziel Terena foi declarada inconclusiva pela Polícia Federal. Em maio de 2013, o jovem indígena foi assassinado durante a reintegração de posse da Fazenda Buriti, uma das propriedades do ex-deputado Ricardo Bacha (PSDB) que incide sobre a terra indígena Buriti, declarada em 2010 como de ocupação tradicional. No mesmo dia, proprietários de terra recusavam indenizações milionárias oferecidas pelo governo como compensação pela devolução das terras aos índios. “Vamos para o pau!”, declarou publicamente Bacha, insatisfeito com os mais de 10 milhões de reais oferecidos a ele e sua família.
Ameaças, truculência, abuso de poder, disputa judicial interminável. A isso estão cotidianamente sujeitos os Guarani Ñandeva da terra conhecida como Yvy Katu, no município de Japorã (MS), fronteira com o Paraguai. Eles esperam ahomologação de sua terra há quase 10 anos, vivem acampados em suas próprias terras e anunciaram recentemente que resistirão à morte à execução de reintegrações de posse ou ações de pistoleiros contra sua permanência na área. O mesmo delegado responsável pela reintegração da Fazenda Buriti os ameaçou verbalmente na última ação realizada pela Policia Federal em Yvy Katu. “Deus abençoe vocês”, respondeu quando os índios disseram que não deixariam sua terra. No Mato Grosso do Sul, dezenas de áreas indígenas aguardam demarcação ou homologação, em configurações semelhantes.
São inúmeros os casos, e não caberia aqui estabelecer uma lista sistemática dessa avalanche de agressões. O que nos parece mais importante é enfatizar que as tensões e os conflitos fundiários se dão em um contexto de ataques políticos e jurídicos intensos aos povos indígenas e a seus direitos constitucionalmente garantidos. De fato, o ano de 2013 foi também um ano de grandes ataques aos direitos indígenas no Congresso, levados a cabo principalmente pela bancada ruralista, que atualmente forma parte da base aliada do governo.
Ao menos trinta proposições sobre legislação indígena tramitam no Legislativo ou foram editadas pelo Executivo, todas afetam diretamente os povos indígenas. Estes projetos de lei e decretos dialogam diretamente com os ataques sofridos pelos indígenas; são uma resposta positiva às demandas das oligarquias agrárias e do agronegócio, principais motores da violência contra as populações originárias. Assim, esse verdadeiro rolo compressor – liderado e conduzido pela bancada ruralista, e praticado hoje no campo da legalidade e da ilegalidade pelo capital brasileiro e transnacional – está dando o tom da reedição da guerra de colonização.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

CARTA AOS PARENTES INDÍGENAS E ALIADOS

Para: APIB. COIAB, SEIND, FOIRN, CUNPIR, PADEREEJ, PANGYJEJ, METAREILLÁ, OMIRAM, OPIRON, COICA, IEB, CIMI, COMIM, KANINDÉ, MST, MAB, FRENTE PARLAMENTAR INDÍGENA

Caros Parentes Indígenas

Nós Povos Indígenas Tenharin e Jiahui, reunidos na Aldeia Marmelos, na Terra Indígena Tenharin Marmelos no dia 10 de janeiro de 2014 por meio de nossas organizações Associação do Povo Indígena Tenharin Morogita - APITEM, Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira - OPIAM, Associação do Povo Indígena Jiahui – APIJ, Associação do Povo Indígena Tenharin do Igarapé Preto – APITIPRE, sobre tudo o que temos enfrentado, informamos que:

Os tempos de nossos antepassados foram tempos difíceis. Achávamos que depois de 1988  uma nova relação entre o Estado brasileiro e os Povos Indígenas estava estabelecida por meio da Constituição Federal de modo que os extermínios, expulsões de territórios tradicionais, escravidão, massacres, humilhação e desrespeito, eram apenas uma triste lembrança do passado. No entanto o ataque terrorista que sofremos em dezembro de 2013 em nossas aldeias – com a queima das casas de compensação e tudo que tinha lá dentro (fogão, utensílios domésticos, redes e colchões) realizados por grupos organizados do Distrito Santo Antonio do Matupi (km 180), de Apuí e Humaitá, a depredação de prédios públicos FUNAI, SESAI e Casa de Apoio dos Parintintin, queima de veículos públicos e particulares e as ameaças e xingamentos que continuam a ser feitas contra nós injustamente, estão nos mostrando que as preocupações do passado ressurgem na atualidade.

Neste difícil momento em que estamos passando – acusados de crimes que não cometemos sofrendo várias formas de discriminação e preconceitos contra nossa condição étnica principalmente através das redes sociais, a negação do direito de ir e vir em nosso próprio estado e município, vivendo como exilados nas aldeias, será de fundamental importância contarmos com o apoio de todos os nossos parentes indígenas.

Neste sentido, solicitamos que este apoio seja concretizado na publicação de documentos como Declarações, Notas Públicas, dentre outros.

Como todos vocês sabem muito bem, há uma grande dificuldade em construir um diálogo efetivo com o governo, o pensamento indígena tem sido pouco considerado pelo Estado brasileiro, de modo que como em outras situações nos sentimos sozinhos diante de gigantescas responsabilidades e decisões que temos que tomar a favor de nossos Povos.

Assim contamos com a presença de todos e todas na reunião com o Governo Federal que será realizada  na Aldeia Marmelos com data a ser confirmada. Solicitamos a confirmação de presença.


Abraços fraternos