Grandes manifestações em Rondônia
Travados diálogo com o chefe do
acampamento e funcionários do CNEC, em 1988, no local onde seria construída a
Usina Ji-Paraná, impedida após muita luta social. Digut aparece na foto,
enfrentando os barrageiros. Se fosse construída, estaríamos emsituação parecida com a de Porto Velho, incluindo Ariquemes,
Jaru, Medici... Parte de Ji-Paraná ficaria debaixo d'agua, mesmo fora das
temporadas de chuva. Em tempos de enchentes mal explicadas, dura repressão à
luta dos atingidos por barragem e tantos projetos de morte rondando os rios
amazônicos, o empenho dos Arara e dos Gavião contra as barragens do rio
Machado, até agora vitorioso, depois de quase 30 anos de batalhas, é inspirador
e alimenta o ânimo pra luta.
Diálogo dos Arara e Gavião com funcionários do CNEC
e ELETRONORTE durante visita ao Acampamento da JP-14, em janeiro de 1988.
Gavião idoso: - Nós chegamos aqui para falar com
você, para conhecer você. E você vai fazer a barragem. Nós chegamos para dizer
o seguinte: seria melhor você não fazer isso! Por que você vai encher a nossa
terra (com água)? Se você constrói a barragem, não é só de um lado que o rio
vai alagar. Vai entrar água na nossa terra também! E daí? Como é que as plantas
vão crescer embaixo do rio? A macaxeira não vai produzir embaixo da água. Tudo
que fica embaixo da água vai apodrecer. Vai morrer seringueira também. Como é
que nós vamos poder fazer o nosso trabalho depois do alagamento? Era isso que
eu vim dizer para você. Eu sou velho. Meus filhos já são adultos. Como que eles
vão fazer depois da barragem? Fica difícil caçar, matar peixe, matar jacaré.
Onde que vão pescar? Eles não têm nada. Era isso que eu, que sou velho, vim
dizer para você.
O chefe do acampamento responde que é exatamente
para conhecer as conseqüências na área indígena que estão querendo mandar a
equipe de topografia, e que quando ficar estabelecido o nível de água dentro da
área indígena, iam passar essa informação para os índios. Quanto à pesca, ele
garante que não precisam ter medo, porque vai melhorar, visto que água parada
cria mais peixe, por ter mais alimentos e dar condições para o peixe desovar
duas vezes por ano. Diz também que áreas de caça perdidas vão ser recompensadas
com áreas de qualidade igual ou melhor, e que as condições de fiscalização da
área ficariam facilitadas. Termina acentuando a necessidade de entrar na área
para poder verificar o nível de interferência para depois – baseados em dados
concretos – passar a negociações sobre uma possível redução da cota de
alagamento, ou o tipo de compensação adequado. A resposta provocou uma reação
tumultuada, onde muitos falavam ao mesmo tempo: - “Não, não, não. Não vamos
autorizar a entrada deles não. De jeito nenhum. Não vão poder medir a nossa
terra. Não podem.”
Gavião Jovem: - Você pode falar para nós que vocês
precisam medir a terra dos índios, mas ninguém vai deixar vocês entrar, não.
Nós estamos pensando nas coisas que precisamos para viver. Os índios não têm
fazenda, como os brancos. Vocês podem matar um boi na sua casa. Os índios não.
Nós comemos caça do mato, frutas do mato. E vocês vão estragar nossas
fruteiras. É isso que viemos falar para você. Mas não era com você mesmo que
viemos falar isso – era com o seu chefe, que fica longe. Eu sei que você não
manda nada, é ele que está mandando você fazer barragem. Aí tu diz para ele que
não é para estragar o nosso mato. Se nós andávamos de quatro pés, nós íamos
deixar você fazer essa barragem e alagar a nossa terra. Os bichos todos estão
deixando você fazer. Mas nós não somos bicho. Somos gente igual você. Temos o
pensamento de gente. Por isso não vamos deixar você alagar a nossa terra. Fala
isso para o seu chefe lá.
Outro Gavião: - Tem que lembrar uma coisa: a nossa
área é muito pequena. Não temos para onde ir. Mas antigamente tínhamos. Mas o
que aconteceu? Tudo aqui era terra indígena. Aí o marechal Rondon passou por
aqui – ele era um invasor nas terras indígenas. Aí fizeram a primeira estrada,
e os índios ficaram afastados, afastados. Às vezes mataram os índios, fizeram
todas as coisas por aí. Quando tinham a estrada pronta, chegava muita gente
pela estrada. Muita gente viajando para cá. E agora, o que que está
acontecendo? Agora tem ‘pedra’ (asfalto) na estrada, para viajar mais rápido.
Aí chegou mais brancos ainda. Cacoal era nada quando meu pai conhecia (a
cidade). Hoje é uma cidade grande. Assim que vai acontecer aqui também. Quando
tiver muita energia aqui, todo o pessoal de fora vai querer chegar por aqui
também. Aí entram na reserva indígena. Aí nós vamos ficar sem terra.
Pajé Gavião: - Eu estou pensando sobre o meu filho
e a minha esposa que estão enterrados lá na beira do Lourdes. Essa água vai
chegar até lá onde estão enterrados. Não pode alagar! Fica feio. Também meu pai
morreu na boca do Lourdes. Esposa dele e filho dele também. Aì a água vai até
ali, no cemitério deles. A água vai alagar tudo lá onde tenho meu pai e meu
filho, e isso eu não quero não. Eu estou com meu coração cheio disso pensando
no meu pai e meu filho que vão ficar embaixo da água.
O chefe do acampamento e o representante do CNEC de
Brasília insistem que os índios estão confundindo o levantamento topográfico e
a construção da barragem. Repetem que estão querendo medir para conhecer os
efeitos do alagamento. Se os efeitos forem muito grandes – se o mal fora maior
do que o bem – podem desistir da construção, porque nada foi decidido ainda. A
equipe de topografia não vai construir nada, e não vai destruir nada. Vai só
medir. Explicam que todas as outras áreas já foram medidas – só falta a área
indígena. Será só depois de conhecer tudo que podem decidir se vão fazer ou não
a barragem.
Gavião de meia-idade: - Ninguém não pensou que
vocês já estavam fazendo a barragem. Nós chegamos aqui justamente para mandar
vocês não fazer! Ninguém está pensando que vocês já estão fazendo. Vocês estão
só estudando ainda. Mas viemos aqui para vocês pensarem o que estão fazendo.
Não queremos que você gasta mais dinheiro à toa. Já gastou muito dinheiro nesse
acampamento, e ainda vai querer gastar mais. Para fazer o que? Então, antes
disso nós viemos aqui – para vocês não construir a barragem. A construção não
foi começada – por isso que viemos para dizer que não é para alagar esse rio.
Não faz! – era isso que viemos dizer para você. Também nós não vamos deixar
vocês entrarem na área para medir onde vai chegar a água. Ninguém não quer
saber onde chega água, não. Queremos que fica ali, normal, pronto. Água ta aí.
Deixa do jeito que está! Pronto.
Pedro Arara: - Vocês sabem que nós moramos na beira
do rio, e se vai acontecer essa barragem, nós não temos para onde ir. Somos
todos cercados. Nós, que viemos por água (para o acampamento), vimos que a
barragem está muito perto, está perto mesmo. São nós que moramos mais na beira
do rio – os outros moram mais por dentro – e se vai fazer essa barragem, vai
estragar muita coisa para nós, porque lá na beira quase tudo é baixo. Por causa
dos posseiros nós já andamos muito, mudando daí para lá, as crianças passando
necessidades. Ninguém vai querer mudar mais. E não temos mesmo para onde ir.
Vocês sabem disso: nós vivemos do mato. Pesca, caça, come frutas, castanhas.
Quando seca o rio, vem todo mundo para beira pescar, caçar, passar algumas
semanas aí. Por isso ninguém de nós vai aceitar essa barragem aí.
Pajé Arara: -Vocês não fizeram a barragem. E também
não é pra fazer! Antigamente a gente andava todo por aqui. Agora vocês querem
tomar tudo! Nós não temos outro lugar para plantar a nossa comida. Então deixa
assim mesmo – sem fazer nada mais! Nós chegamos aqui bem antes de vocês. O rio
não é de vocês não. Esse rio era nosso! Foi nós que morávamos por aqui
antigamente. Nós temos muito tempo aqui. Vocês não tinham morada por aqui,
nesse rio! Foi nós que sempre morávamos por aqui. Depois que nós fizemos tudo
por aqui, vocês estão querendo fazer isso – fazer barragem! Aqui era nosso
mato. A terra era nossa primeiro. Tudo aqui era nosso!
Termina a reunião numa conversa entre o chefe do
acampamento e o intérprete Arara. O chefe do acampamento constata que a posição
indígena foi colocada muito claramente. Ele assegura que entendeu perfeitamente
e pede a continuação do diálogo.
Que o projeto da Usina
Tabajara e tantos outros previstos para os rios amazônicos nunca saiam do papel
e suas águas possam correr livres.
“Eu quero o Rio
Machado continuando do jeito q
ue está aí. Pra preservar minha cultura, minha história. Eu não quero outra água não. Eu quero a mesma água. Eu quero achar a mesma pedra. Eu quero desviar da mesma pedra que está no meio do rio. Eu não quero outra água em cima daquela pedra, não.” Catarino Sebirop Gavião. (Nas fotos, Heliton Gavião, em ato do Abril Indígena unificado com Jornada de Lutas do MST, em 2010, Porto Velho; Carlão Arara no Encontro de Atingidos e Ameaçados por Barragem de Rondônia, em 2006, Porto Velho; Local proposto para barramento do Rio Machado, em Machadinho D'Oeste.).
ue está aí. Pra preservar minha cultura, minha história. Eu não quero outra água não. Eu quero a mesma água. Eu quero achar a mesma pedra. Eu quero desviar da mesma pedra que está no meio do rio. Eu não quero outra água em cima daquela pedra, não.” Catarino Sebirop Gavião. (Nas fotos, Heliton Gavião, em ato do Abril Indígena unificado com Jornada de Lutas do MST, em 2010, Porto Velho; Carlão Arara no Encontro de Atingidos e Ameaçados por Barragem de Rondônia, em 2006, Porto Velho; Local proposto para barramento do Rio Machado, em Machadinho D'Oeste.).
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